A Avenida dos Campos Elísios, em Paris, que outrora evocava momentos de nostalgia e promessas, tornou-se recentemente um cenário de confrontos e protestos. A canção de Joe Dassin, que celebrava a vida na cidade, agora contrasta com a realidade de barricadas e detenções. A França, meio século após os tumultos de Maio de 68, vê-se novamente nas ruas, onde a contestação e a luta contra o poder se intensificam.
Na última semana, Emmanuel Macron nomeou Sébastien Lecornu como novo primeiro-ministro, o quarto em apenas um ano. A queda de François Bayrou, resultante de uma moção de censura, expôs a fragilidade do governo, que já não consegue garantir uma estabilidade mínima. Lecornu, um jovem tecnocrata de 38 anos, foi escolhido mais pela sua lealdade ao presidente do que por mérito próprio. O novo primeiro-ministro enfrenta duas tarefas desafiadoras: aprovar o orçamento de 2026 num Parlamento fragmentado e conter uma revolta social que se alastra pelo país sob o lema “Bloquons Tout”, que significa “bloquear tudo”.
A memória histórica da França é forte. Em Maio de 68, o país parou com dez milhões de grevistas e barricadas em universidades e fábricas. O general De Gaulle chegou a deixar o país para se reunir com os militares, enquanto o Estado parecia à beira do colapso. A crise, no entanto, resultou em eleições antecipadas que favoreceram a direita gaullista. Embora o sistema político tenha resistido, a sociedade sofreu transformações profundas, incluindo liberalização cultural e reformas sociais.
O movimento “Bloquons Tout” evoca esse passado, mesmo sem líderes carismáticos ou sindicatos fortes. A lógica de bloqueio atual paralisa estradas, refinarias e aeroportos. Nos últimos dias, Paris foi palco de confrontos, com 159 detenções e mais de 80 mil polícias mobilizados. O lema dos protestos é claro: “Nem austeridade, nem compromissos”.
Macron enfrenta, assim, um dilema que seus antecessores também conhecem. François Hollande terminou o seu mandato sem conseguir responder ao terrorismo e à estagnação económica. Nicolas Sarkozy lidou com escândalos que marcaram o seu governo. Jacques Chirac e François Mitterrand também enfrentaram crises que limitaram suas ambições. A história mostra que cada presidente na França começa como um salvador, mas termina como um desapontamento.
Eleito em 2017 como símbolo de renovação, Macron tornou-se sinónimo de uma arrogância tecnocrática. O movimento dos “Coletes Amarelos” expôs a desconexão entre o governo e o povo. Com apenas 15% de aprovação popular, o presidente enfrenta uma contestação crescente. O seu discurso sobre a Europa, que apela a mais autonomia e defesa comum, colide com a sua fragilidade interna. A Alemanha e a Itália observam com preocupação, pois uma França debilitada pode fragilizar a União Europeia, especialmente num momento em que a guerra na Ucrânia e a política de Trump nos EUA criam tensões.
É importante, no entanto, ter cautela ao traçar paralelos com Maio de 68. A França de 1968 gozava de um crescimento económico robusto e pleno emprego juvenil, enquanto a de 2025 enfrenta uma dívida pública superior a 110% do PIB e uma crise identitária. O descontentamento é estrutural, com serviços públicos afetados por cortes e uma juventude sem perspectivas.
O presidencialismo da V República, criado para evitar instabilidade, parece reproduzir as mesmas patologias. A fragmentação parlamentar tornou-se um entrave à governabilidade, evidenciado pela troca frequente de primeiros-ministros. A “França doente do presidencialismo” enfrenta uma ingovernabilidade que lembra os anos 50.
Marine Le Pen e Jordan Bardella, da extrema-direita, criticam o “caos macronista” e pedem eleições antecipadas. Jean-Luc Mélenchon, pela esquerda, acusa Macron de manter a mesma política de austeridade. O vazio político permite que a rua ganhe força, e a história ensina que, em França, quando a rua se levanta, o poder treme.
O esgotamento é palpável. Se em 1968 o gaullismo parecia desgastado, hoje é o presidencialismo que parece ter chegado ao seu limite. O risco é que a resposta não seja uma vitória da direita clássica, mas sim da extrema-direita. A dissolução da Assembleia pode abrir caminho para Marine Le Pen, um cenário que parecia distante há uma década, mas que agora é uma preocupação real.
A França tem sido um laboratório para a Europa. Em 1968, antecipou revoltas culturais; em 1992, liderou o debate sobre Maastricht; em 2005, rejeitou a Constituição Europeia; em 2018, contestou a globalização com os “Coletes Amarelos”. Em 2025, poderá estar a iniciar uma nova fase: a implosão do modelo presidencial e, com ele, do modelo europeu tal como o conhecemos.
Os parisienses, que outrora encontravam tudo o que desejavam na Avenida dos Campos Elísios, agora veem apenas o reflexo de uma crise política, social e económica. A rua voltou a desafiar o Palácio do Eliseu. A grande questão é se Emmanuel Macron terá a força necessária para resistir como De Gaulle fez em 1968, ou se este será o momento em que a V República revela o seu verdadeiro fim.
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Fonte: Sapo