A frase de abertura do clássico “Anna Karenina”, de Tolstói, pode bem ilustrar a atual situação da Europa. A União Europeia, uma entidade complexa e imperfeita, enfrenta um dilema comum: como lidar com a interferência russa, que desde a queda do Muro de Berlim tem tentado dividir e manipular os seus Estados-membros. Cada país vive a sua própria infelicidade, seja pela dependência energética, fragilidade institucional ou vulnerabilidade à desinformação.
Recentemente, a Moldávia foi palco de mais um teste à resistência europeia. As eleições moldavas resultaram numa vitória clara dos partidos pró-europeus, evidenciando a força do apelo ocidental. No entanto, a interferência russa, através de propaganda e manipulação digital, deixou claro que a Moldávia ainda não se sente plenamente integrada na Europa. Embora a vitória tenha sido política para a União, o caminho a percorrer continua repleto de desafios.
A interferência russa não é um fenómeno recente. Desde o fim da Guerra Fria, Moscovo tem aperfeiçoado as suas táticas, desde campanhas de desinformação contra a NATO até a manipulação de referendos em países como o Reino Unido e a Espanha. O campo de batalha mudou, agora estendendo-se para a esfera mental. A Rússia compreendeu que não precisa apenas de força militar para fragilizar os seus adversários; manipular perceções e amplificar medos é igualmente eficaz.
O medo é, de facto, uma das maiores armas da Rússia. Os europeus receiam que as eleições não sejam justas, que drones hostis possam atravessar o espaço aéreo sem serem detectados e que interesses externos influenciem governos democraticamente eleitos. Este clima de incerteza pode transformar a Europa numa vítima colateral de uma guerra psicológica que mina a sua coesão interna.
A interferência russa actua como um veneno lento. Quando as sociedades começam a duvidar do valor do voto, a democracia enfraquece. Se as pessoas acreditam que os seus líderes são marionetas de interesses externos, a confiança desaparece. E quando os Estados se dividem entre os que resistem e os que cedem, a União Europeia perde a sua essência: a coesão.
O objetivo de Moscovo não é vencer batalhas isoladas, mas sim provocar a fratura do projeto europeu. Putin já demonstrou que não precisa de tanques para derrotar a União; basta-lhe esperar pela eleição certa que crie divisões. A possibilidade de uma vitória de partidos extremistas em países como França poderia não só fragilizar a coesão europeia, mas também colocar em causa a solidariedade atlântica e a resposta à guerra na Ucrânia.
Os exemplos de interferência russa são numerosos e variados. No Reino Unido, a manipulação durante o referendo do Brexit levantou questões sobre a confiança no processo democrático. Em França, os laços financeiros entre bancos russos e partidos de extrema-direita continuam a gerar desconfiança. Na Alemanha, a espionagem russa permanece ativa, mesmo após a redução do corpo diplomático. Nos Estados Unidos, a eleição presidencial de 2016 tornou-se um exemplo global da capacidade russa de manipulação.
O que Moscovo procura é desgastar a Europa, os seus líderes e a confiança dos cidadãos. A cada ataque informático, a cada notícia falsa, o objetivo não é apenas um ganho imediato, mas sim prolongar a sensação de vulnerabilidade. A Rússia impõe uma guerra psicológica em que cada vitória se mede em dúvidas plantadas e fissuras abertas.
A resposta à pergunta “quem tem medo da Rússia?” deveria ser: todos nós. O verdadeiro perigo não reside apenas numa invasão militar, mas na erosão da confiança que sustenta as democracias. A interferência russa, como demonstrado nas eleições moldavas e em outros contextos, é uma ameaça constante à coesão da União Europeia.
A defesa da Europa começa muito antes das suas fronteiras físicas. É essencial resistir à manipulação, fortalecer a literacia mediática e proteger os processos eleitorais. A batalha decisiva é política, informativa e psicológica. A União Europeia deve transformar as suas infelicidades numa resposta comum, caso contrário, o medo continuará a ser a arma mais poderosa de Moscovo.
Leia também: A importância da coesão europeia na era da desinformação.
Leia também: Uma empresa de alimentos para bebés de Jennifer Garner pede IPO
Fonte: Sapo